Wednesday, August 02, 2017

Museu da Vinha e do Vinho de Bucelas

https://www.youtube.com/watch?v=mSXTzXBQrEk

Entrevista numa vinha de Bucelas

https://www.youtube.com/watch?v=NS83y8aHXA8

https://www.youtube.com/watch?v=1GwwjtLfaKk

Da Fala à escrita

Margarida Moreira da Silva
Antropóloga
O Ser Humano tem desenvolvido o seu sistema de comunicação desde há milhares de anos, procurando sobretudo a sua sobrevivência como ser social. Essa comunicação visa desvendar o universo, descobrir os seus enigmas e paradoxos, procurando sistematizar esses conhecimentos no uso quotidiano e transmiti-los para as gerações seguintes.
A cultura ágrafa permaneceu nas comunidades humanas (hoje em dia ainda persiste naquelas de carácter predominantemente rural), por muitos milhares de anos. O homem desenvolveu segmentos da sua cultura comunicacional através da formação de linguagem oral diversificada, linguagem gestual, linguagem corporal e linguagem simbólica, até que surgiu a grafia na forma de escrita propriamente dita, com o aparecimento dos povos mesopotâmicos e egípcios.
http://oslusonautas.blogspot.pt/2014/01/6eme-civilizacao-egipcia-os-hieroglifos.html
No processo de leitura topográfica estabelecido, foi dado um outro passo para a consolidação da comunicação por esse meio gráfico, com a reprodução de formas com a finalidade exclusiva da comunicação entre seres humanos.
O passo seguinte foi a reprodução dessas formas através do desenho, fazendo com que essas formas fossem representadas por traços, sinais e desenhos gráficos.
Essa fase foi de grande importância para o homem, pois significou a sua inserção definitiva no plano virtual, no campo do abstracto, no mundo dos significados, dos signos e símbolos.
Foi a partir dos desenhos das figuras existentes em cada comunidade e da simplificação dos desenhos representativos de cada coisa que se chegou à criação de letras e alfabetos (signos).
Temos pois aqui uma evolução; da coisa, para a sua representação/forma, seu desenho, sua simbologia, e finalmente passamos para o mundo dos signos, sinais sem significado (significante), permitindo a construção de ideias através da sua sintaxe.
A cultura humana é um elemento abstracto, porém vivo e muito dinâmico. A cultura é sempre avassaladora, dominadora e expansiva. A cultura faz conquistas e estabelece domínios continuamente, estando sempre em expansão.
Quando se trata de cultura já estabelecida num grupo étnico, económico ou outro qualquer tipo de agrupamento humano, as intersecções culturais, as fusões, as adaptações e modelagens são constantes, resultando sempre numa cultura dominante com resquícios de outras culturas dominadas que também dará lugar no futuro à reconfiguração para uma outra cultura.
O acervo cultural de conhecimentos dentro de cada cultura é muito vasto e tem a sua dinâmica própria. Incorpora os novos conhecimentos e expurga conhecimentos desfasados pelo tempo.
“O homem ágrafo", possui a mesma maturidade intelectual que aquele vivendo em sociedades que conhecem a escrita. É um homem prático, que aproveita as vantagens que se lhe apresentam, contanto que não estejam demasiado arredadas dos padrões tecnológicos de sua cultura, o que poderá ocorrer aquando de uma aculturação.
Tudo em torno da cultura reside no modo como cada sujeito se insere no quotidiano, como se relaciona com a sociedade, com a vida, com o divino e como concebe o mundo.
Em termos de comunicação ágrafa, o comunicado é recebido, interpretado e repassado com os acréscimos da nova interpretação. Ele é sucessivamente transmitido sempre a partir da interpretação que cada um faz com base no seu repertório individual, nas suas habilidades interpretativas, na sua capacidade dramática, na sua criatividade. É muito comum tais comunicados chegarem à globalidade da comunidade com um sentido muito diverso do sentido original. E alguma interpretação mais convincente do facto acaba por justificar a diferença.
Uma das finalidades desses acréscimos é a retenção da essência do comunicado. Uma história com início, meio e fim que tem por base um ensinamento filosófico e moral, tem maior retenção na memória colectiva. Nesse sentido é comum a atribuição de factos acontecidos com membros da comunidade, como prova de autenticidade, embora esses mesmos factos também possuam um ensinamento filosófico significativo. A história fica preservada, sobrevive anexada aos mitos, o que explica muitas contradições entre os diversos mitos de uma mesma história.
Num sistema mais informal, os comentários chamados “boca a boca”, encarregam-se de difundir o comunicado pela grande massa da comunidade e até pode propagar-se significativamente, dependendo do apelo dramático e espectacular da notícia. Uma essência primordial do comunicado é mantida, uma espécie de matriz, que serve como «gancho» do evento, para manter alto o interesse pela história. Através das manifestações da oralidade, poder-se-á descortinar toda uma gama de mentalidades, conceitos de vida, de socialização, religiosidade e crenças.
Quando se conta um conto, uma anedota ou se canta uma cantiga, orador e ouvinte formam um todo, pelas reacções emocionais que o discurso provoca, ou pela reflexão que desencadeiam.
A oratura nas comunidades rurais, em locais onde o reduzido grau de alfabetização conduziu à baixa influência da escrita na vida quotidiana das pessoas, tem encontrado paralelismo com povos de culturas ágrafas. Ambos se regem, em grande parte, pelas leis da oralidade, como catalisador de normas vivenciais e como veículo de transmissão de conhecimentos e saberes ancestrais. A palavra dita, tem um enorme poder, pois para além da comunicação que provoca entre as pessoas, reforçando laços emocionais e sociais, também serve de ligação/interface com o sobrenatural, como acontece no caso da medicina popular. Na zona Norte do Concelho de Loures, onde a cultura rural ainda é muito evidente, as quadras populares ou cantigas soltas como são mais conhecidas pelas gentes locais, tanto podem ser recitadas como cantadas. Neste último caso, são «encaixadas» em modas populares da região, utilizadas quer em bailaricos, quer durante os trabalhos no campo. Estas cantigas soltas, funcionavam também até há algumas décadas atrás, como elementos de um complexo de comunicação envolvendo estratégias de namoro e corte. Algumas destas quadras, quer durante, mas sobretudo fora do contexto dos bailaricos e portanto muitas vezes desligadas da imediata função lúdica, serviam como mensagens pré-fabricadas, utilizadas qual linguagem codificada, para «arremesso» aos rapazes conforme a situação. Hoje em dia, já quase perdida essa funcionalidade, outras entretanto se sobrepuseram como função lúdica, servindo para o fortalecimento de laços afectivos entre grupos de convívio ou como símbolo de uma identidade cultural cuja memória colectiva ainda não se apagou.
Fevereiro de 2017